Bruxas Latinas: Histórias de Resistência e Perseguição na América Latina

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Quando pensamos em bruxas, nossa imaginação costuma nos levar para Salém ou para as florestas da Europa medieval. No entanto, a América Latina abriga uma história igualmente poderosa de bruxaria — uma história marcada por espiritualidade, perseguição e resistência.

Aqui, as bruxas não são figuras sombrias escondidas nas sombras, mas mulheres (e homens) que guardavam o conhecimento da terra, das ervas e dos espíritos. São curandeiras, parteiras e líderes espirituais que, em meio à colonização e à Inquisição, mantiveram vivos os saberes ancestrais de seus povos.

Neste artigo, vamos mergulhar na trajetória dessas bruxas latino-americanas, suas práticas espirituais, a perseguição que sofreram e o legado que deixaram.

Bruxaria na América Latina: espiritualidade e resistência

A ideia de bruxaria na América Latina está profundamente ligada à resistência das culturas indígenas e africanas frente à dominação europeia. Os colonizadores, ao se depararem com rituais, medicinas naturais e tradições espirituais que não seguiam a doutrina cristã, rotularam tudo isso como “feitiçaria”.

Mas as práticas das chamadas bruxas eram, na verdade, expressões de um modo de vida ancestral:

Ervas medicinais: o uso das plantas para curar doenças e harmonizar corpo e espírito fazia parte de uma sabedoria transmitida oralmente por gerações.

Rituais de conexão com a natureza: cerimônias dedicadas à terra, à Lua e aos ciclos da vida, que reafirmavam a interdependência entre humanos e natureza.

Tradições espirituais coletivas: cânticos, danças e rezas que fortaleciam o vínculo comunitário e mantinham viva a relação com o sagrado.

Essas práticas não eram apenas meios de cura, mas também formas silenciosas de resistência cultural. Por meio delas, comunidades indígenas, africanas e mestiças preservavam suas identidades e religiosidades diante do avanço da colonização e da repressão da Igreja.

A Inquisição na América Latina e no Brasil

Embora muitas vezes associada à Europa, a Inquisição também atuou nas Américas. Entre os séculos XVI e XVII, tribunais do Santo Ofício funcionaram em cidades como Lima, Cidade do México e Cartagena, perseguindo indígenas, africanos e mestiços que desafiavam o domínio religioso europeu.

No Brasil, a atuação inquisitorial ocorreu de maneira menos formal, mas igualmente cruel. Visitadores e denunciantes percorriam cidades como Salvador, Olinda e Recife, além de regiões do Sertão, em busca de “feiticeiros” e “curandeiras”. A simples prática de benzimentos, a celebração de festas populares ou a devoção a entidades ancestrais eram motivos de prisão e tortura.

Essas ações tinham um objetivo claro: impor a hegemonia cristã e apagar os saberes tradicionais que fortaleciam o senso de autonomia espiritual dos povos colonizados.

História de Bruxaria: Paula de Eguiluz

Entre os inúmeros nomes apagados pela história da Inquisição latino-americana, o de Paula de Eguiluz se destaca como um dos mais emblemáticos.

Foi nesse contexto que, em 1620, Paula de Eguiluz foi enviada de Havana (Cuba) para Cartagena (Colômbia), sob denúncia do Tribunal do Santo Ofício. Ela foi acusada de “pactos demoníacos” e “magia negra”. De acordo com os registros históricos, Paula teria utilizado orações e ervas para curar enfermidades, práticas que, para os inquisidores, inevitavelmente só poderiam vir do diabo.

Durante os interrogatórios, Paula foi submetida a longas sessões de tortura física e psicológica. Sob coerção, admitiu conhecer as propriedades das plantas, porém negou qualquer vínculo com forças demoníacas. O tribunal, entretanto, não a via como uma simples curandeira. Pelo contrário, acreditava que havia algo perigoso em seu saber, especialmente porque, após o tribunal libertá-la em seu primeiro julgamento, Paula começou a vender seus conhecimentos sobre ervas e magias amorosas para mulheres brancas da alta sociedade. Entre elas estava Ana de Fuentes, esposa de Francisco de Guerra, que, mesmo se beneficiando de seus artifícios, acabou por acusá-la novamente de bruxaria, levando-a a enfrentar um segundo julgamento.

Além disso, os documentos da época relatam que Paula foi julgada três vezes ao longo de sua vida, sendo absolvida em alguns momentos e novamente acusada em outros. Essa insistência das autoridades em puni-la demonstra o quanto seu conhecimento desafiava a estrutura colonial e patriarcal vigente.

Portanto, a história de Paula de Aguiluz não é apenas sobre perseguição, mas também sobre resistência. Ela simboliza a força das mulheres afro-caribenhas que mantiveram vivas as tradições de cura, mesmo diante da violência colonial e religiosa. Ainda hoje, sua figura ecoa na memória coletiva, representando tantas outras curandeiras latino-americanas que, mesmo anônimas, sustentaram a continuidade dos saberes ancestrais.

O Museu da Inquisição em Cartagena – Colômbia

O Museu da Inquisição, localizado no coração da cidade amuralhada de Cartagena das Índias, é um dos edifícios coloniais mais impressionantes e controversos da Colômbia. Instalado no antigo Palácio do Tribunal do Santo Ofício, o prédio foi construído em 1770 e abrigou, até o início do século XIX, a sede da Inquisição no território colombiano.

De fachada barroca e varandas de madeira esculpida, o palácio se destaca pela beleza arquitetônica que contrasta com a brutalidade de sua história. Por trás das paredes claras e dos portais de pedra, funcionavam salas de julgamento, celas, câmaras de tortura e arquivos secretos do tribunal religioso.

Hoje, o local é parte do Museu Histórico de Cartagena, e reúne uma das coleções mais completas sobre o período colonial colombiano. Entre os itens expostos estão instrumentos de tortura originais, reproduções de registros inquisitoriais, painéis explicativos sobre a vida cotidiana da época e documentos que mostram o papel da Igreja e do Império Espanhol na repressão cultural.

O espaço é dividido em diferentes seções:

  • Sala da Inquisição, onde se explicam os métodos de investigação e punição utilizados pelo tribunal;
  • Sala da Colônia, com objetos que retratam o cotidiano da Cartagena colonial;
  • Sala da Independência, dedicada aos processos de libertação e à transição da cidade após o fim do domínio espanhol.

Caminhar por seus corredores é uma experiência densa e simbólica. As paredes de pedra e os pisos de madeira parecem carregar o peso das vozes que um dia ecoaram ali — vozes de pessoas acusadas por manter saberes, práticas e crenças diferentes daquelas impostas pelo poder religioso.

Apesar da dureza de sua história, o museu é hoje um espaço de memória e reconciliação, onde visitantes, estudantes e pesquisadores podem refletir sobre a herança colonial da América Latina e o impacto espiritual e cultural da perseguição inquisitorial.

Outras histórias e territórios de bruxaria na América Latina

Em várias regiões da América Latina, as bruxas e curandeiras se tornaram parte essencial da memória popular.

Catemaco, México: conhecida como a “capital das bruxas”, a cidade de Veracruz abriga, desde tempos pré-colombianos, tradições ligadas à magia e à cura. Todos os anos, Catemaco realiza um congresso que reúne curandeiros, xamãs e espiritualistas para compartilhar saberes e preservar suas práticas ancestrais.

Chiloé, Chile: na mística ilha de Chiloé, as histórias de bruxas se misturam ao folclore local. A famosa Caverna de Salamanca é tida como um espaço de iniciação e aprendizado, onde as bruxas se reuniriam para realizar rituais de proteção e sabedoria.

O Sertão Brasileiro: no sertão nordestino, as benzedeiras e líderes espirituais mantiveram vivos os rituais de cura e proteção. Suas práticas combinavam influências africanas, indígenas e católicas populares, criando um sistema espiritual único, centrado na fé e na relação com a natureza.

Esses territórios são testemunhos da vitalidade dos saberes que resistiram à repressão colonial e religiosa.

A resiliência dos saberes ancestrais

As bruxas latino-americanas representam algo muito mais profundo do que superstição ou magia. Por meio de seus saberes, comunidades inteiras conseguiram preservar línguas, plantas sagradas, modos de cura e formas de celebrar o sagrado que não dependiam das estruturas do poder europeu.

O resgate de práticas como a benzedeira, a pajelança, o uso ritual das ervas e o culto aos orixás revela que a ancestralidade segue viva, pulsando sob novas formas.

Nesse sentido, as religiões afro-indígenas, como o Candomblé, a Umbanda e a Santería continuam a expressar a espiritualidade que a colonização tentou destruir. Portanto, elas são testemunhos da resistência e da capacidade de cura de uma cultura que sobreviveu à violência e ao apagamento.

Conclusão: a memória das bruxas como cura e resistência

A história das bruxas na América Latina é, acima de tudo, uma história de sobrevivência. Cada erva que cura, cada reza que protege e cada dança que celebra o sagrado carrega a memória das mulheres perseguidas por manterem viva a sabedoria ancestral.

Reconhecer figuras como Paula de Aguiluz é um ato político e espiritual. É compreender que a bruxaria latino-americana não nasce do medo, mas do amor à terra, da força coletiva e da fé em algo que nenhuma fogueira conseguiu apagar.

Hoje, quando olhamos para essas histórias, não vemos apenas bruxas: vemos mulheres sábias, curandeiras e ancestrais que continuam a nos ensinar que resistir também é uma forma de cura.ém de sabedoria, resistência e preservação da identidade cultural.

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